Autora, Ana Beatriz Carvalho e amigos – Foto divulgação

Aos 80 anos de idade e algo mais, ela carregava consigo uma bolsinha de ombro. No acessório levava palavras, sentimentos, vibrações, energias, provérbios, orações, versículos bíblicos, ensinamentos diversos, habitualmente encontrados após incessante busca. Não descansava nesse intento: amealhar instrumentos que declarassem o amor universal como a fonte da vida, para si a única possibilidade de se alcançar a harmonia nos desequilíbrios de que a existência é pródiga. Bolsinha pesada. Não pelo conteúdo material no seu interior, senão pelos valores imateriais a transbordá-la, conjugando em igual medida sensibilidade e razão.
Era vigorosa. Andava a pé porque nisso tinha prazer. O elevado propósito movia o seu ânimo, reforçava a sua fé e balizava o seu empenho de se multiplicar por vários lugares onde a sua presença pudesse ser um alívio.
Muito bonita, com voz mansa, envolvia invariavelmente os seus interlocutores. Usava lindos lenços, echarpes de cores coordenadas e vibrantes. Apresentava-se sempre bela, enfeitada, com adereços delicados, mesmo quando ia às suas aulas de pilates. O aroma de seu perfume anunciava com antecedência a sua presença. Lembrava uma flor sorridente. Encantava!
O cumprimento do seu propósito, quer fosse manhã, quer sucedesse à tarde, sob sol ou debaixo de chuva, era desempenhado em silêncio. Só ela e os Céus sabiam qual era a grande missão a que se entregava de corpo e alma. Percursos longos, ascendentes e descendentes, retilíneos, em círculos ou em espirais. Caminhava sempre. Deambulava com destino certo (oferecer palavras inspiradas), mesmo desconhecendo endereços e destinatários.
Sabia-se apenas uma mensageira e deixava falar por si a encomenda que consigo transportava. Dentre as oferendas de iluminado remetente, fulgurava O Povo de Deus.
Sim, O Povo de Deus. Fervorosa em sua fé, frequentava a igreja com a regularidade de uma devotada serva. Paciente, aguardava que todos saíssem do templo para recolher um dos combustíveis de sua missão: O Povo de Deus, folhetim litúrgico pelo qual os fiéis acompanhavam o serviço sagrado. Pensava consigo: ele ainda pode continuar guiando, orientando, ensinando, conduzindo vidas. Dar-lhe-ei novo destino. Inspirada por esse vislumbre, recolhia-os, depositava-os em sua bolsinha de ombro e sentia-se imbuída do salutar e imprescindível compromisso de fazer chegar a muitos as palavras de O Povo de Deus. E o fazia sempre em silêncio, oculta, anônima.
Assim, seguia nos caminhos de sua comunidade local ou alhures, silenciosa, com brando sorriso a lhe estampar o semblante e tomada por uma candura comovente. Abria a bolsinha de ombro e, languidamente, depositava O Povo de Deus nos bancos das praças, nas paradas de ônibus, nos shoppings, nos postos de saúde, nas escolas, nos prédios residenciais. Nunca olvidara, na execução daquela dádiva, de elevar um bom pensamento e esplender autêntico sentimento de amor. Ousava, até mesmo, oferecer incógnita aquele “papelzinho sagrado” nos banheiros femininos e masculinos dos shoppings.
Sempre andarilha, à maneira de peregrinação, caminhava com rumo definido: o coração das vidas.
Acreditava que as mensagens que levava, selecionadas com cuidado e carinho, dissipariam dores, revelariam caminhos, apontariam direções, firmariam propósitos, agregariam fé, entregariam esperança. Reproduzia tantas vezes uma única e mesma oração, que nas derradeiras impressões a sua legibilidade ficava comprometida, o que passava ao largo de quebrantar a sua determinação. Antes o contrário. Constituía, ainda assim, fôlego para os seus dias, presumida alegria para os receptores desconhecidos. Assim seguia com a vitalidade de uma criança e a dedicação de uma missionária. Suspirava de satisfação ao depositar O Povo de Deus em um cantinho propício para ser encontrado. Regava-o com o olhar repleto de amor, imaginando que alcançaria as profundidades abissais das mentes e dos corações.
Decerto que perdeu a conta de quantos O Povo de Deus distribuiu, bem assim da quantidade de lugares que visitou para partilhar palavras edificantes e que traziam luz, paz, sabedoria e renovação da esperança, movida pela familiaridade com a Força Sublime.
Em silêncio, serena, oculta, fazia-se presente sem ser notada. Cumpria a sua missão com alegria, radiante encargo criado por ela ou pelos Céus ou, na via complementar, pelos Céus e por ela, e por isso constituindo a mais elevada liberdade. Em que pese o paradoxo que conjuga serviço e liberdade – assim a convicção do missionário -, importante era que a mensageira das palavras, no exercício da sua entrega, conquistava amigos que jamais haveria de conhecer sem aquele labor bem-aventurado. Alegrava-lhe sentir que o coração das vidas teria, com a luz das palavras inspiradas, a oportunidade de pensar algo diferente da apatia funcional a corroer as atividades cotidianas na correria desvairada dos tempos. Constrangidas pelo verbo de sabedoria e amor distribuído por aquela discreta senhora, as atribulações do mundo moderno cederiam espaço e tempo para a calmaria da reflexão. À tarefa de cuidar das vidas dedicava-se com sinceridade e sem descanso aquela senhora. E para o cumprimento da elevada obstinação, levar serenas e reconfortantes mensagens ao coração das vidas, contava com o Povo de Deus. Era esse o seu cálice da felicidade.
Tomada por entusiasmo, de que se não pode evadir, a anônima e incansável senhora era capaz de imaginar a transformação ocorrida quando a leitura dos bons ensinos penetrava as emoções. Por força desse vislumbre antecipado, envidava esforços em levar O Povo de Deus para onde o coração das vidas era o ambiente do mais fecundo florescer do amor divino. Era essa a oferta da mensageira da luz, isenta de qualquer expectativa de recompensa: cuidar das almas com o Povo de Deus. Sorriso nos lábios, alegria no espírito e disposição inquebrantável para entregar palavras divinas por mãos humanas, a caminho ela se punha.
A riqueza de sua existência se consolidou naquela prática constante: trabalhar para que o coração das vidas recebesse palavras e mensagens que o protegesse, inspirasse e o reanimasse do cansaço e do desencanto cotidiano. Nunca abriu os lábios. Jamais sonorizou recados. O silêncio e o recôndito eram o palco de seu canto plácido. O coração das vidas, o seu compromisso anímico.

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Biografia: Ana Beatriz Carvalho: Escritora brasiliense, Normalista, Professora. Educadora com especialização em Direitos Humanos e mestrado em Políticas Públicas. Sua produção literária reúne contos, microcontos, cartas, poemas e prosas poéticas. Vários de seus trabalhos foram selecionados para Antologias e Coletâneas. É membro das seguintes academias literárias: ALMUB/Brasília e AINTE/Fortaleza. Participou da 26ª Bienal Internacional do Livro de SP e da Bienal do Rio 2023 como autora. Recebeu o Prêmio Destaque Literário e Autora Revelação 2022 pela Ler Editorial e obteve o 2º lugar no X Prêmio Literário Escritor Marcelo de Oliveira Souza. Indicada para o Prêmio Ler é Legal 2023/MPDFT. Participante como autora no evento Livros em Pauta e indicada para a 2ª fase do Prêmio Strix de Literatura 2024. Premiada na categoria Melhor Biografia – I Prêmio Sapiens de Literatura Brasileira pela Editora Holandas.  Autora dos livros Contos de uma Mulher Feliz: viver para crer que tudo é bom, belo e necessário e Viva a Vida!

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