Da janela deixava o olhar vagar em meditação sem palavras e sem planos prévios. Desejava estar perto de amigos, ambientes, pessoas e natureza. A sua presença diante daquele vão doméstico era cotidiana. Várias vezes ao dia e em diversos horários. No período de reclusão habituara-se a estar fisicamente distante de todos, mas próxima de muitos por força do olhar e do sentir. Mas ainda lhe faltava algo para que a conexão fosse viva.
A interdição pesava-lhe como fardo ingrato, embora necessário. Não desejava sair de casa e, mesmo se assim o não fosse, eram os filhos quem a alertavam do perigo, não bastasse a saturação do noticiário da TV informando a cada instante o avanço da pandemia, excedendo qualquer fronteira.
Dedicava muitas horas do dia para contemplar da janela o pouco de movimento que ainda restava nas ruas.
Pensava alto: corajosos, destemidos e valentes. Há sempre aqueles que por força da obrigação ou da distração enfrentam os desafios da vida ladeando os riscos, afastando o perigo, sustentando a fé. Trabalhadores invencíveis!
A um só tempo, o silêncio e o vazio de um mundo antes densamente povoado era incômodo e ensinava. Por um lado, as rotinas se repetiam com algum aborrecimento: refeições solitárias, limpeza dos cômodos de casa, programas televisivos, diálogos telefônicos, leituras dispersas. Por outro, a agradável visita à janela. Estar à janela era o melhor momento do dia.
Quando se punha de pé diante daquela abertura para o mundo, os aprendizados se multiplicavam. Apreciava serenamente a natureza; descobria ou fantasiava a motivação que levava as poucas pessoas a circularem pelas ruas, apesar de em número sempre decrescente; educava a limpidez e a concentração da audição ao acompanhar cada som que lhe chegava em sua solidão; permitia, enfim, que os sentidos internos aflorassem e captassem cada mensagem da vida com profundidade, imersa em reflexões acentuadas.
Em seus 75 anos de existência, jamais havia notado a beleza da natureza com tamanha admiração. As formas, os sons, as cores, os contrastes, as combinações, tudo saltava à percepção, tornando-se telas benditas a alimentar e a pacificar o seu espírito solitário.
Também o movimento das ruas se transfigurou, tocado pelo salto sensorial e intuitivo que experimentava na clausura. Passou a se preocupar com todos e cada um dos transeuntes. A empatia aflorou sem porquê: “sentem-se bem?” “Como estarão os seus familiares?” “Estarão protegidos do vírus?” “Precisam de algo?”
A cada visita à janela, como quem frequenta um oráculo, acumulava profundas reflexões sobre o sentido da vida, bem como acerca da presença que a sua existência animava. Elevou-se. Renovou-se. Conquistou novos saberes e soube mais de si mesma.
A imersão introspectiva e continuada desde a janela despertou-lhe para a companhia terapêutica da escrita. Desde então, escrever e ler o que escrevia ascenderam ao status de íntima companhia. Quando se deu conta do prodígio, havia atravessado o período da prova mundial a escrever ao menos um poema por dia. Com efeito, foi uma grande descoberta: uma abundante e antiga fonte de experiências, histórias e sentimentos despontava rediviva.
Ativou suas habilidades esquecidas e entregou-se à arte de criar poemas.
Tornou à janela muitas outras vezes. Gostava da sua companhia e do que ela proporcionava ao seu ânimo criador. Aquela sua amiga impessoal e inanimada ativara espontaneamente, ainda que em situação delicada (ou talvez por isso mesmo), as suas habilidades esquecidas convocando-a à poesia.
À janela passou a escrever poemas e a declamá-los com emoção. As suas palavras aladas, durante a crise humanitária, eram lançadas ao vento e percorriam distâncias para alcançar conhecidos e desconhecidos. A experiência poética inspirada por aquela fonte de conexão com o mundo sensível e intuitivo constituiu-se então naquilo que ainda lhe faltava ao olhar e ao sentir solitários. Sábia, a vida lhe ofereceu o necessário e gratuito para que ficasse perto dos seres vivos, mesmo deles estando longe: a poesia, uma forma extraordinária de conversação no silêncio.
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Biografia: Ana Beatriz Carvalho: Escritora brasiliense, Normalista, Professora. Educadora com especialização em Direitos Humanos e mestrado em Políticas Públicas. Sua produção literária reúne contos, microcontos, cartas, crônicas, haicais, poemas e prosas poéticas. Vários de seus trabalhos foram selecionados para Antologias e Coletâneas. É membro das seguintes academias literárias: ALMUB/Brasília e AINTE/Fortaleza. Participou da 26ª Bienal Internacional do Livro de SP e da Bienal do Rio 2023 como autora. Autora dos livros Contos de uma Mulher Feliz: viver para crer que tudo é bom, belo e necessário e Viva a Vida!
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Elenir Alves é formada em Publicidade e Marketing. Editora-chefe da Revista Projeto AutoEstima e Assessora de Imprensa da Revista Conexão Literatura. Foi coeditora, juntamente de Ademir Pascale, do extinto fanzine TerrorZine – Minicontos de Terror. Foi coautora de diversos livros, entre eles “Draculea – o Livro Secreto dos Vampiros”, “Metamorfose – A Fúria dos Lobisomens” e “Zumbis – Quem disse que eles estão mortos?”, nas horas vagas adora escrever poemas e frases inspiradoras.
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